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“O reforço do coronelismo político e das decisões de cúpula impostas ao povo merece o maior destaque e o maior esforço de superação na nossa luta”

Publico hoje a SEGUNDA PARTE (clique aqui para ler a primeira) da minha conversa com Humberto Cunha, fundador do PT no Pará, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, nosso primeiro vereador em Belém , doutor em educação popular, ex-combatente clandestino pró-democracia no Brasil e lenda viva da esquerda paraense.

Hoje ele fala da sua experiência de luta contra o regime militar, sobre o projeto estratégico petista para o Brasil, sobre Belo Monte, sobre direitos humanos – desde abertura de arquivos secretos da repressão até democratização dos meios de comunicação – e juventude.

Leia aí embaixo:

Deputado Bordalo – Na em que você iniciou seu ativismo, um dos principais debates era sobre o projeto de desenvolvimento do estado, incluindo as polêmicas dos chamados “grandes projetos”. O que você pensa de Belo Monte?

Humberto Cunha – Eu acho que há uma diferença básica entre os grandes projetos na época da ditadura e hoje. Naquele tempo não havia a oitiva popular. As decisões eram tomadas em Brasília e aplicadas sem que nós, os nativos da Amazônia, pudéssemos dizer alguma coisa sobre o que fazer com os nossos recursos minerais, hídricos, pesqueiros ou florestais. Havia até a pretensão de nos impor propostas criadas em outros países, como foi o caso dos Grandes Lagos Amazônicos, de Hermann Khan, que submergiriam todas as terras desde Óbidos até Manaus, projeto criado em New York, contra a qual tivemos que lutar nas ruas de Belém, enfrentando a polícia.

Algumas pessoas tentam passar ao público a idéia de que a atual proposta para Belo monte e o Xingu é idêntica à construção da barragem de Tucuruí ou Balbina ou mesmo o antigo projeto de Kararaô. É preciso examinar algumas diferenças positivas no conteúdo e na forma como se faz o atual projeto de Belo Monte em relação aos projetos do passado.

Uma diferença essencial é tecnológica. Os grandes reservatórios, gerando enormes áreas alagadas, foi um sinal de alerta nas décadas de 1980 e 1990. Balbina foi o limite: muita área alagada para um baixo rendimento de energia. O antigo projeto da Barragem de Kararaô foi abandonado e em seu lugar foi constituído o atual, de Belo Monte, utilizando a tecnologia “a fio d`água”, diminuindo a área alagada a cerca de um terço do projeto original. Aí emerge a preocupação ambiental e antropológica. Com menor área alagada, resta mais espaço para a preservação da biodiversidade. Belo Monte, além de ser a hidrelétrica cujo projeto foi o mais estudado e debatido no mundo, também será a única cuja área de proteção ambiental será equivalente ao da superfície alagada. No projeto atual, o alagamento será o mesmo que já ocorre no período das cheias do Xingu. Esta redução do alagamento permite também proteger áreas indígenas que seriam atingidas pelo projeto original.

Outra diferença importante diz respeito à concepção de desenvolvimento presente nos dois projetos. O projeto de Kararaô era do tipo enclave, como foram todos os grandes projetos na Amazônia desde a Colônia até a ditadura. Basta lembrar o passivo ambiental e social dos projetos Jari e Carajás, deixados pelos militares e que estão sendo corrigidos pelos governos de Lula e Ana Júlia. O projeto de Belo Monte, tal como é hoje, integra-se à logística do desenvolvimento ambientalmente sustentável e socialmente justo, no âmbito local, nacional e latino-americano. Nossos povos têm o direito de produzir e de fazer circular a produção. As pessoas têm o direito de circular livremente. Tucuruí foi construída sem esses cuidados, tanto que a eclusa só agora está sendo feita, como também só agora, trinta anos depois da obra pronta, está sendo providenciado o fornecimento de energia elétrica aos municípios do entorno do lago.

O governo aprendeu com os erros de Tucuruí. O povo aprendeu. Todos nós aprendemos. Enquanto em Tucuruí não havia qualquer preocupação com o desenvolvimento local nem mecanismos de participação popular, na região do Xingu já há o Consórcio Belo Monte, que reúne os municípios do entorno, já está garantido o PDRSX-Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu, bem como a eletrificação de dezenove municípios do entorno e da área de ligação entre o Xingu e o Marajó. Tudo isto, diferentemente do período anterior, é feito com participação popular. Foram oito mil pessoas ouvidas na discussão do EIA-RIMA, o PDRSX está sendo feito com base em plenárias regionais e o povo tem outros mecanismos de apresentação e de discussão das suas demandas, como o PTP, os fóruns e conferências, além do Conselho das Cidades.

Belo Monte é necessária, mas não é a única necessidade. Em seguida virá o Complexo do Tapajós e as pequenas e micro hidrelétricas. Pode-se perguntar: por quê isto é necessário? Porque precisamos diversificar nossa matriz energética e todas as outras fontes são mais caras. A energia solar custa R$ 200,00 o megawatt/hora, a nuclear, R$ 150,00. A energia eólica, R$ 148,00. A de bagaço de cana de açucar R$ 141,00. Gás natural, carvão e óleo R$ 140,00. Para que se possa estabelecer uma equação de redução da tarifa tanto para o consumidor doméstico como para reduzir o preço dos produtos industriais torna-se necessário aumentar a oferta de energia hidrelétrica, cujo preço médio de produção é de R$ 78,00, mais ou menos um terço do custo da energia solar e cerca de metade da eólica.

Algumas pessoas tentam passar ao público a idéia de que a atual proposta para Belo monte e o Xingu é idêntica à construção da barragem de Tucuruí ou Balbina ou mesmo o antigo projeto de Kararaô

DP – Você foi um dos líderes mais perseguidos pela ditadura militar no estado. Como esse regime se manifestou aqui? Qual herança econômica, social e política ele legou aos nossos dias?

HC – A ditadura aqui atingiu duramente nos primeiros momentos, em 1964, o movimento
sindical e o movimento estudantil. Os sindicatos foram controlados, por intervenção direta e pelo veto do SNI aos ativistas de esquerda na composição das chapas em momentos de disputa eleitoral. Como o movimento estudantil se recompôs ainda em 1965, mantendo estruturas clandestinas em nível nacional, durante o restante da década o confronto passou a se dar entre as forças de repressão e os estudantes. Esta relação só veio se alterar de forma substancial no final da década de 1970, quando começa a ser quebrado o controle dos órgãos de repressão sobre os sindicatos.

Quanto às heranças, podemos citar a perda de autonomia do Governo do Pará sobre a maior parte do território estadual, a partir de um simples decreto do General Médici, quando era o ditador de plantão. Só recentemente a soberania do Pará sobre o seu território foi reconquistada, mas ficaram vícios e mazelas daquele período.

A concentração das terras e da renda, os assassinatos de lideranças e apoiadores dos trabalhadores rurais, o trabalho escravo, a desnacionalização da economia, além do medo generalizado, que submetia grande parte da população ao voto de cabresto nas forças mais reacionárias e anti-populares ,são outras heranças daquele período
O reforço do coronelismo político e das decisões de cúpula impostas ao povo merece o maior destaque e o maior esforço de superação na nossa luta pela democracia com ampla participação popular.

DP – Ainda neste tema, qual o impacto do PNH3, se implementado na íntegra, aqui no Pará? Em que isso contribuiria para alterar a realidade local? A questão central do PNH3, que gerou tanto debate, realmente era a Comissão da Verdade?

HC – O Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos é um documento de 91 páginas. Atinge quase todos os setores da vida social. Nenhum pedaço de papel substitui a luta de classes, portanto o Decreto 7037, que instituiu o PNDH3, só vai produzir frutos se a sociedade civil, isto é, os movimentos sociais, os sindicatos, se mobilizarem para que saia do papel para a vida real. Quanto às questões que causaram polêmica e não foram aceitas em sua formulação original, devemos continuar a travar a luta utilizando a redação constante no documento oficial.

Não acho que foi apenas a Comissão da Verdade que gerou intranqüilidade nos setores reacionários. A arbitragem nas questões fundiárias, a obrigação de compromisso da mídia com os direitos da população, são questões que assustam aqueles que sempre usaram o poder econômico e político para fazer valer os seus interesses de grupo contra os direitos de todo o povo.

Não devemos dar por perdidos os pontos que não conseguimos fazer passar agora. A luta continua; não podemos nos dar por derrotados.

Em especial, devemos focar nossa luta no Direito à Verdade e Memória e no Direito à Informação Pública. A luta por estes direitos se desdobra na luta pela implantação da Comissão da Verdade, pela abertura de todos os arquivos públicos, em especial aqueles do período 1964-1988, mas também pelo direito de acesso aos arquivos dos órgãos de comunicação de massa daquele período, onde há muita informação importante e inédita.

Não acho que foi apenas a Comissão da Verdade que gerou intranqüilidade nos setores reacionários. A arbitragem nas questões fundiárias, a obrigação de compromisso da mídia com os direitos da população, são questões que assustam aqueles que sempre usaram o poder econômico e político

DP – Grupos de esquerda que optaram por sair do PT afirmam que o partido se desligou da luta socialista e se comporta como linha auxiliar (ou a própria representação) do empresariado. Você concorda com isso? Para além do eleitoral, como se vincula o governo do Pará, sua reeleição e a construção de uma sociedade nova?

HC – Não me consta que o PT tenha em algum momento se definido programaticamente pelo socialismo. Esta discussão já estava presente na fundação do partido. Havia os que pretendiam que ele cumprisse de imediato a tarefa de propor ao povo brasileiro a transição ao socialismo e os que achavam que ainda há muita luta a ser travada no interior da sociedade capitalista como método de acumulação de forças para a passagem ao socialismo.

Da minha parte, entendo que uma vanguarda política, por mais esclarecida que seja e por mais fortalecida que se encontre numa conjuntura, não pode obrigar o povo a ser socialista. Pelo contrário, quando o povo estiver cansado do capitalismo e quiser outra experiência de vida, é importante que haja uma vanguarda socialista, com formação teórica, firmeza ideológica e capacidade de direção para propor um programa socialista e dirigir a transição.

Além disto, é importante levar em conta que sociologicamente o socialismo nasce na classe operária, mas politicamente só pode se estabelecer se houver concordância de várias classes, uma concertação popular.

Penso que o partido deve investir fortemente na formação teórica dos seus militantes e orientá-los à contribuição decidida na organização dos conselhos e outras formas de participação que o povo decida criar num pacto com o governo.

Penso também que o governo deve investir para o empoderamento do povo nas estruturas do Estado. Esta é uma importante tarefa da companheira Ana quando reeleita. Embora ainda ocorra no interior do capitalismo, a participação do povo nas tarefas de Estado educa para o socialismo. Outra tarefa também orgânica e igualmente importante é a produção de uma classe operária educada e disciplinada no padrão da produção capitalista mais avançada, questão das mais importantes, quer se examine o problema do ponto de vista da teoria quanto da prática social.

As duas tarefas já começaram a ser realizadas. A primeira através de organismos como o PTP, as câmaras setoriais e os conselhos, a segunda através da verticalização da produção, seja dos recursos naturais seja da agro-pecuária. Não podemos pensar em verticalização apenas como geração de valor agregado ou de mercadorias. Se recorrermos a Marx, vamos perceber que o operário se produz como humanidade enquanto produz os meios de existência.

Penso também que o governo deve investir para o empoderamento do povo nas estruturas do Estado. Esta é uma importante tarefa da companheira Ana quando reeleita. Embora ainda ocorra no interior do capitalismo, a participação do povo nas tarefas de Estado educa para o socialismo.

Ao disponibilizar as condições para que se instalem siderúrgicas, fábricas de biocombustível, frigoríficos, moveleiras, agroindústrias e outras linhas industriais, o Governo Popular está criando a possibilidade histórica do surgimento de uma classe operária numericamente forte no Pará. Mas, quem cria um operariado como classe em si, tem a obrigação ética de ajudá-lo a produzir-se como classe para si. O crescimento qualitativo desta classe operária está vinculado à tarefa já mencionada anteriormente, de empoderamento popular e formação teórica, tanto massiva quanto de lideranças, dos trabalhadores. A dialética da formação da classe capaz de postular o socialismo não depende só da quantidade (número de pessoas na classe) nem só da qualidade (organização e formação teórica), as duas tarefas se interpenetram, se influenciam mutuamente.

DP – Quais as grandes vitórias da sua geração política e quais as tarefas da atual geração de jovens do PT?

HC – A minha geração, em especial os militantes das organizações comunistas e católicas de esquerda, ofereceu apoio à proposta de reformas de base do Governo Jango, que poderiam dar capilaridade social às conquistas do desenvolvimentismo do período getulista-juscelinista. Lamentavelmente, o golpe de Estado civil-militar de 1964 interrompeu esse processo e nossa geração teve que rebelar-se. Especialmente os mais jovens, embalados pela busca da autenticidade, da liberdade, da justiça.

O preço pago foi muito alto, em vidas e sofrimento, mas conseguimos o fim da ditadura, a reconstrução do Estado de Direito, a re-constitucionalização do país.

Com o Governo Lula, o país retomou o ritmo do desenvolvimento, desta vez com controle da inflação e elevação das condições de vida do povo. Mas não conseguimos fazer tudo o que era necessário. Ficou muita coisa para a nova geração e todas as pessoas de boa vontade estão conclamadas a se juntar nesta tarefa.

Para a juventude que se apresenta hoje no cenário político, restaurar a verdade e a memória é apenas uma das tarefas, para que o presente não seja, como em LOST, uma ilha de solipsismo. O presente, além de um tempo com significado em si mesmo, também deve ser um link real entre o passado e futuro.

O preço pago foi muito alto, em vidas e sofrimento, mas conseguimos o fim da ditadura, a reconstrução do Estado de Direito, a re-constitucionalização do país(…)Ficou muita coisa para a nova geração

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