A Assembleia Legislativa do Pará deverá formar uma comissão de estudos para avaliar o impacto dos grandes projetos em Santarém, em especial a instalação de um porto graneleiro na região do Lago do Maicá, pela Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), para escoar a produção de soja do Mato Grosso. A decisão foi anunciada pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor, deputado estadual Carlos Bordalo (PT), durante a Sessão Especial realizada nesta sexta-feira (17), no barracão da Associação de Moradores Pérola do Maicá, em Santarém.
Considerado santuário ecológico da região, berçário natural de aves, mamíferos e peixes de um ecossistema ameaçado, na junção dos rios Tapajós e Amazonas, o Lago do Maicá integra uma Área de Proteção Ambiental (APA). Segundo os moradores, a instalação do porto irá atingir nove comunidades quilombolas, 59 comunidades ribeirinhas e quatro comunidades indígenas. O empreendimento prevê a movimentação de mil carretas de grãos por dia, nos anos iniciais, e o aterramento total do Lago do Maicá, que hoje garante cerca de 30% do peixe que abastece Santarém, gerando trabalho e renda para 1,5 mil pescadores.
Em abril do ano passado, a Justiça Federal ordenou a paralisação do licenciamento do porto, até que os responsáveis comprovem a realização da consulta prévia, livre e informada dos povos e comunidades afetados, conforme prevê a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Enquanto isso, produtores de soja e empresários locais defendem o empreendimento sob o argumento da geração de empregos e aumentam as pressões sobre as comunidades. O projeto prevê a abertura de 700 postos de trabalho nos primeiros meses, mas apenas 70 serão mantidos após a instalação do porto.
O deputado Carlos Bordalo tem acompanhado a disputa em torno do Lago do Maicá desde 2015, quando realizou uma Audiência Pública em Santarém. De volta à região em 2017, ele também percorreu os municípios de Óbidos e Oriximiná, prospectando informações para lastrear o trabalho da comissão de estudos do parlamento paraense. A comissão deverá reunir cinco deputados, com instalação prevista para fevereiro de 2018. Os parlamentares serão auxiliados por um corpo técnico e um conselho consultivo, reunindo ainda prefeituras e parlamentos da região e a sociedade civil organizada. O grupo terá até 190 dias para entregar uma avaliação do projeto, incluindo recomendações para regularização fundiária, legalização das áreas quilombolas e instalação de empreendimentos portuários.
Na visão do parlamentar, o debate específico sobre o Lago do Maicá é uma oportunidade para discutir, de forma serena, o modelo de desenvolvimento que a população deseja para a região. “Queremos um desenvolvimento que em poucos anos ofereça apenas alguns ganhos momentâneos, ou um desenvolvimento que se harmonize com aquilo que é sagrado para nós, o meio ambiente e a vida das populações tradicionais?”, questiona. “Sabemos que a polêmica é grande, mas a Comissão de Direitos Humanos se orientará pela Convenção 169 da OIT, que foi ratificada pelo Congresso Brasileiro e hoje é um decreto presidencial. Durante a nossa sessão, todos foram ouvidos com respeito: produtores rurais, empreendedores, o prefeito de Santarém, vereadores e também comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. Queremos encontrar o melhor caminho para o desenvolvimento, mas que a região permaneça com a beleza que possui”, ressaltou o deputado. Para ele, a Sessão Especial foi histórica. “O parlamento paraense veio pela primeira vez ao Maicá, para oportunizar que a população se manifestasse”.
Processo contínuo
Logo no início da sessão, o procurador federal Camões Boaventura informou que o Ministério Público Federal não consideraria o evento o início da consulta prévia às comunidades atingidas. “Também é importante frisar que não cabe ao empreendedor coordenar o processo de consulta, mas ao Estado. Além disso, a consulta é um processo dialógico, que precisa ser renovado continuadamente”, explicou. “Sempre que se fala em desenvolvimento, surgem visões antagônicas, mas é preciso observar o que a legislação considera como exigência. Os ministérios públicos não permitirão que o processo avance sem obediência ao que a legislação determina”, ressaltou.
Jucenil Coelho, representante da Colônia de Pescadores Z-20, questionou a quem se presta o discurso do desenvolvimento. “Muito se fala em desenvolvimento, emprego, milhões de reais, mas para quem servirá esse dinheiro? Será que é para benefício da população ou para meia dúzia de pessoas? O que vemos lá fora é que o desenvolvimento não foi para o povo, pois aumentou a criminalidade, não gerou educação e nem saúde. Para esse desenvolvimento temos que deixar os pescadores desempregados, aumentando o preço do pescado, prejudicando quilombolas e povos que vivem aqui tradicionalmente? Nossa colônia de pescadores vai defender os 1,5 mil associados que tiram sua sobrevivência do lago, que sustentam a população de Santarém levando sua produção para feiras e mercados”, disse ele.
“Não somos invisíveis”
Franciney Oliveira, representante da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), lembrou que as populações quilombolas vivem há mais de 300 anos na região, nas margens esquerda e direita do Lago do Maicá. “Travamos uma luta, junto com a pastoral e os demais movimentos, para entender o que de fato estava acontecendo conosco. Com grande dificuldade, tivemos acesso ao estudo e ao relatório de impacto ambiental, que indicava somente uma comunidade quilombola. Então, pedimos ao Ministério Público que suspendesse esse projeto, até que fôssemos consultados, mas não consultados de qualquer forma, por isso elaboramos o nosso protocolo”, explicou.
Existem oito associações quilombolas no Maicá, sendo cinco na margem direita e três na margem esquerda, todas legalmente constituídas, pleiteando há mais de uma década o direito definitivo às terras. “Não somos contra o desenvolvimento, desde que seja para o nosso povo, e não para o capital internacional, que tira tudo que temos, leva, destrói, e não fica nada. Que o desenvolvimento seja igual para todos, sem pisar no direito de um e de outro. Não somos invisíveis”.
Inconsistência
No início do ano passado, diversas entidades e lideranças de movimentos sociais solicitaram à Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) a criação de um grupo de trabalho, reunindo professores de diversas áreas, para analisar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) enviado à Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Santarém pela Embraps. O estudo está sendo finalizado e o relatório contendo os pareceres será divulgado em breve. Mas os resultados preliminares apontam inconsistências metodológicas em vários componentes, evidenciando a fragilidade do EIA.
“Uma dessas inconsistências, por exemplo, ocorre no âmbito da pesca. Os estudos mostram que o Maicá é um local de reprodução de peixes, portanto, mudanças na dinâmica do lago poderão interferir no pescado. Outra se refere à negação da existência de sítios arqueológicos e de populações tradicionais na região do Maicá, que é conhecido por ser um local onde se realiza a pesca artesanal. Mas os pescadores artesanais, que são considerados populações tradicionais, estão invisíveis no documento. O mesmo ocorre com as comunidades quilombolas”, explica a professora Danielle Wagner, coordenadora do grupo de estudos, que reúne 13 professores da instituição, quatro estudantes de pós-graduação e três colaboradores externos.
O documento também ignora os aspectos sociais do empreendimento, como a realocação das famílias para a construção do porto, da estrada e do pátio de carretas, assim como as consequências comuns a grandes projetos na Amazônia, como aumento da prostituição, aliciamento de menores e tráfico de drogas. Para os professores, o projeto terá impacto não somente nas áreas diretamente atingidas, mas em todo o município de Santarém, servindo a um modelo de desenvolvimento que ignora a biodiversidade e as populações tradicionais.
Quem participou
Nélio Aguiar, prefeito de Santarém; Valdeci Oliveira, representante do Conselho Pastoral dos Pescadores; Franciney Oliveira, da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém; Milene Fonseca, secretária de Meio Ambiente de Santarém; vereador Sílvio Amorim, presidente da Comissão de Meio Ambiente, representando a Câmara Municipal; Ubirajara Bentes, da Ordem dos Advogados do Brasil Subsessão Santarém; Francisca Camilo, da Federação de Moradores e Assentados do Eixo Forte; Ione Nakamura, promotora do Ministério Público do Pará; Inês Pinho de Carvalho, da Comissão de Justiça e Paz; Adriano Maraschin, presidente do Sindicato de Produtores Rurais; Jucenil Coelho, da Colônia de Pescadores Z-20; Jeferson Gomes, da Casa Familiar Rural de Santarém; Ediana Serra da Costa, da Colônia de Pescadores Z-33 Almeirim; Luís Camões Boaventura, procurador do Ministério Público Federal; Danielle Wagner Silva, professora da UFOPA e coordenadora do Grupo de Estudos do EIA do Porto do Maicá; William Lopes, advogado das Associações da Área do Grande Maicá; Laudenilson Santos, presidente da Associação de Moradores Pérola do Maicá; Sebastião Noé, da Associação de Moradores do Bairro da Vigia; Alcilene Maia, presidente do Conselho Comunitário do Jaderlândia; Milson Rocha, do Centro Comunitário Bairro Umari; Sidelma Ribeiro, presidente da Associação de Moradores Área Verde; Maria Neuma Santos, presidente do Conselho Comunitário do Pérola do Maicá; e Manoel Matos, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, entre outros.